terça-feira, 21 de junho de 2011

Relativização do estupro de vulnerável diante da atipicidade material

Inquérito Policial nº ..
  
Consta do presente inquérito policial que, em data incerta, mas ocorrida em xxxx, em horário também incerto, J, qualificado a fls. 11, teve conjunção carnal com D, na época menor de 14 anos de idade.

O indiciado, ouvido pela autoridade policial a fls. 11, afirmou que namorava com a vítima há aproximadamente um ano, com consentimento da mãe dela, e inclusive frequentava a casa de D. Confirmou que manteve relação sexual com a menor apenas uma vez.

D, ouvida a fls. 09, confirmou o namoro e o relacionamento sexual, dizendo que gostava de J e queria continuar o namoro.

A mãe da vítima, C (fls. 07), informou que o namoro de J e D foi permitido até o momento em que foi descoberto que ele era ex-usuário de drogas. Segundo C, a filha teria mantido a relação sexual por “pirraça”.

A menoridade de D está confirmada pela certidão de nascimento de fls. 10.

Em que pese o tipo penal descrito no “caput” do artigo 217-A do Código Penal – “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos” – prever objetivamente a prática do ato sexual, independentemente de outros elementos normativos, a análise dos fatos em concreto não autorizam a persecução penal.

Tomando-se por premissa a moderna doutrina da Teoria Constitucionalista do Delito, que desmembra a tipicidade penal nos aspectos formal ou objetivo, subjetivo e normativo ou material, não se pode subsumir, perfeitamente, a conduta ao tipo penal.

Embora presente a tipicidade formal ou objetiva (descrição objetiva do tipo penal – art. 217-A, CP) a tipicidade subjetiva – caráter psicológico do agente – não está perfeitamente caracterizado, na medida em que não se vislumbra a lesão ao bem jurídico tutelado, qual seja, a dignidade sexual.

Isto se denota da confissão espontânea de ambas as partes – autor e vítima – que confirmaram o relacionamento amoroso e sexual. Até mesmo perante o Setor Técnico do Juízo D relatou que “iniciou relação sexual com o namorado de forma segura e por desejo próprio” (relatório psicossocial de fls. 27).

De outro lado, quando se analisa se a conduta possui relevância penal, diante da lesão provocada ao bem jurídico tutelado e o desvalor da conduta, verifica-se ausente também a tipicidade material.

Tendo por norte o princípio da intervenção mínima do direito penal, que deve ocupar-se daqueles delitos intoleráveis e graves, de significante perturbação social, a conduta ora apurada revela-se mais grave à família da suposta vítima do que a esta própria.

Com efeito, a genitora de D relatou, em entrevista com o Setor Técnico, que a filha “manteve relação sexual por ‘birra’ (sic) e prefere que a questão seja amenizada, não observando alterações comportamentais em D” (fls. 28).

Não por menos, as técnicas puderam inferir que “a formalização da denúncia se deu mais para comprovar sua autoridade (da mãe) e oferecer limites claros à filha do que protege-la” (fls. 29).

Assim, o parecer psicossocial (fls. 29) não identificou “nenhuma alteração comportamental ou emocional significativa que pudesse estar atrelada a alguma vivência traumática de cunho sexual.” E arremata dizendo que, “apesar da precocidade, D consentiu em iniciar sua vida sexual com Jhones e que a relação, segundo nos foi relatado, não apresentou indícios de coerção ou violência física.”

A relativização da presunção da violência nos crimes sexuais praticados contra menores de idade é tema debatido há anos, tal como já asseverava Nelson Hungria:

"O dissenso da vítima deve ser sincero e positivo, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta uma platônica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição passiva ou inerte. É necessária uma vontade decidida e militantemente contrária, uma oposição que só a violência física ou moral consiga vencer. Sem duas vontades embatendo-se em conflito, não há estupro. Nem é de confundir a efetiva resistência com a instintiva ou convencional relutância do pudor, ou com o jogo de simulada esquivança ante uma vis grata..."("Comentários ao Código Penal", Forense, 1983, vol. VIII, págs. 107-108.)

Também a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já assinalou:

“RECURSO ESPECIAL COM PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. INCIDENTE NÃO PROCESSADO. INICIATIVA EXCLUSIVA DOS ÓRGÃOS DOS TRIBUNAIS. PRECEDENTES. ESTUPRO MEDIANTE VIOLÊNCIA PRESUMIDA. VÍTIMA ADOLESCENTE. CONDUTA ANTERIOR À LEI Nº 12.015/2009. ACÓRDÃO HOSTILIZADO QUE CONSIDERA RELATIVA A PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. MANUTENÇÃO DO DECISUM A QUO. INTERPRETAÇÃO ABRANGENTE DE TODO O ARCABOUÇO JURÍDICO. A POSSIBILIDADE DE A MENOR, A PARTIR DOS 12 ANOS, SOFRER MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS É INCOMPATÍVEL COM A PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE VIOLÊNCIA NO ESTUPRO. PRECEDENTE. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DAS PROVAS ACERCA DO CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. SÚMULA 07 DO STJ. (...) 2. O delito imputado ao recorrido teria sido em tese praticado anteriormente ao advento da Lei Nº12.0155, de 7 de agosto de 2009, que implementou recentíssimas alterações no crime de estupro. O acórdão absolutório, objeto do presente recurso especial, entendeu ser insustentável que uma adolescente, com acesso ao modernos meios de comunicação, seja absolutamente incapaz de consentir relações sexuais, o que, no entender do Tribunal a quo, implicaria responsabilização objetiva ao réu, vedada no nosso ordenamento jurídico. 3. É inadmissível a manifesta contradição de punir o adolescente de 12 anos de idade por ato infracional, e aí válida sua vontade, e considerá-lo incapaz tal como um alienado mental, quando pratique ato libidinoso ou conjunção carnal. Precedente - HC 88.664/GO, julgado em 23/06/2009 pela 6ª Turma desta Casa e divulgado no Informativo Jurídico nº 400 deste Superior Tribunal de Justiça. 4. No que diz respeito à conclusão do acórdão hostilizado, no sentido de estar bem caracterizada a prova acerca do consentimento da ofendida, é defeso a esta Corte o revolvimento fático probatório, conforme Sumula 07 deste Superior Tribunal de Justiça. 5. Recurso ao qual se nega provimento.” (REsp 494.792/SP, Relator Ministro CELSO LIMONGI DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP, DJe 22/2/10) (grifo nosso).

O entendimento é consentâneo à hipótese, apenas a título de ilustração, de um casal de adolescentes, ambos com 13 anos de idade, namorados, que mantém relações sexuais. Haveria, em tese, a prática recíproca de ato infracional tipificado como estrupro de vulnerável?

Interessante colacionar, a esse respeito, trecho de entrevista concedida pelo médico hebiatra Dr. Maurício de Souza Lima, coordenador do Ambulatório dos Filhos de Mães-Adolescentes do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, membro da Associação Paulista de Adolescentes e do Departamento de Adolescentes da Sociedade de Pediatria de São Paulo, e autor do livro “Filhos Crescidos, Pais Enlouquecidos” (Editora Landscape, SP, 2006), ao também médico Dr. Drauzio Varella (disponível no endereço da internet - URL: ‘http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/4400/sexualidade-na-adolescencia’):

“Os jovens estão despertando cada vez mais cedo para a vida sexual. Se pensarmos que aos 15 anos 50% dos meninos e meninas já tiveram a primeira relação sexual, temos de concluir que a iniciação sexual está acontecendo mais cedo. Comparado com os dados obtidos não muitos anos atrás, o primeiro beijo também é uma experiência que ocorre mais cedo. Sem dúvida, essa precocidade é estimulada pelos meios de comunicação deste século XXI - Internet, TV, imprensa falada e escrita, bancas de jornal, etc. – e até por muitos pais que, por exemplo, aplaudem a dança erotizada da menina de cinco anos, mas se assustam e ficam preocupados quando ela, aos dez anos, começa a namorar.”

Reflexo dessa “sexualização” precoce de crianças e adolescentes, é o crescente número de jovens grávidas. Embora não tenha sido este o resultado do presente caso, serve para ilustrar a necessidade, em situações como estas, mais de educação do que sanção penal.

“Cabe destacar que a gravidez precoce não é um problema exclusivo das meninas. Não se pode esquecer que embora os rapazes não possuam as condições biológicas necessárias para engravidar, um filho não é concebido por uma única pessoa. E se é à menina, que cabe a difícil missão de carregar no ventre, o filho, durante toda a gestação, de enfrentar as dificuldades e dores do parto e de amamentar o rebento após o nascimento, o rapaz não pode se eximir de sua parcela de responsabilidade. Por isso, quando uma adolescente engravida, não é apenas a sua vida que sofre mudanças. O pai, assim como as famílias de ambos também passam pelo difícil processo de adaptação a uma situação imprevista e inesperada.
Diante disso cabe nos perguntar: por que isso acontece? O mundo moderno, sobretudo no decorrer do século vinte e início do século vinte e um vem passando por inúmeras transformações nos mais diversos campos: econômico, político, social.
Essa situação favoreceu o surgimento de uma geração cujos valores éticos e morais encontram-se desgastados. O excesso de informações e liberdade recebida por esses jovens os levam à banalização de assuntos como o sexo, por exemplo. Essa liberação sexual, acompanhada de certa falta de limite e responsabilidade é um dos motivos que favorecem a incidência de gravidez na adolescência.
Outro fator que deve ser ressaltado é o afastamento dos membros da família e a desestruturação familiar. Seja por separação, seja pelo corre-corre do dia-a-dia, os pais estão cada vez mais afastados de seus filhos. Isso além de dificultar o diálogo de pais e filhos, dá ao adolescente uma liberdade sem responsabilidade. Ele passa, muitas vezes, a não ter a quem dar satisfações de sua rotina diária, vindo a procurar os pais ou responsáveis apenas quando o problema já se instalou.
A desinformação e a fragilidade da educação sexual são também questões problemáticas. As escolas e os sistemas de educação estão muito mais preocupados em dar conta das matérias cobradas no vestibular, como: física, química, português, matemática, etc., do que em discutir questões de cunho social. Dessa forma, temas como sexualidade, gravidez, drogas, entre outros, ficam restritos, quase sempre, aos projetos, feiras de ciência, semanas temáticas, entre outras ações pontuais. Os governos, por sua vez, também se limitam às campanhas esporádicas. Ainda assim, em geral essas campanhas não primam pela conscientização, mas apenas pela informação a respeito de métodos contraceptivos. Os pais, como já foi dito anteriormente, além do afastamento dos filhos, enfrentam dificuldades para conversar sobre essas questões. Isso se dá devido a uma formação moralista que tiveram. Diante dessa realidade o número de pais e mães adolescentes cresce a cada dia.”
MORAES, Rosalina Rocha Araújo. Gravidez na Adolescência. URL: [http://www.infoescola.com/sexualidade/gravidez-na-adolescencia]. Data de publicação: 05/09/2007.

Ignorar a realidade social e tomar com objetividade cega o preceito legal ora discutido conduziria à responsabilidade penal objetiva, sem análise de dolo ou culpa, criminalizando-se a conduta do ato sexual por si, com um falso moralismo.

A título de argumentação, seria o caso, portanto, de se deflagrar a persecução penal de todos os pais dos bebês nascidos de mães adolescentes? Ou então seria fomentar a “paternidade irresponsável”, já que ninguém se habilitaria a assumir a paternidade dessas crianças sabendo do risco de serem condenados à pena de 8 a 15 anos?

Por certo é louvável a iniciativa do legislador para punir mais severamente os crimes sexuais praticados contra vítimas menores, especialmente aquelas tidas como vulneráveis. Para tanto, foi necessária a busca de um critério limitador, o cronológico, além das condições biopsicológicas especiais.

Todavia, não se pode afastar as peculiaridades de cada caso concreto. Do contrário, estar-se-á punindo, com a mesma severidade, tanto aquele que mantém relações sexuais com sua namorada adolescente, quanto o contumaz pedófilo doentio que se aproveita da fragilidade da criança ou adolescente.

Por estas razões, pela falta de elementos para deflagração da persecução penal e diante da atipicidade material da conduta, requeiro o ARQUIVAMENTO do presente inquérito policial, sem prejuízo do disposto no artigo 18 do Código de Processo Penal.

07 de junho de 2011.