terça-feira, 20 de setembro de 2011

Reflexões acerca do princípio da insignificância e da Teoria Constitucionalista do Delito, diante das condutas delitivas reiteradas


Reflexões acerca do princípio da insignificância e da Teoria Constitucionalista do Delito, diante das condutas delitivas reiteradas

Juliano de Camargo
Assistente Jurídico do Ministério Público, pós-graduando em Direito Público
Agosto/2011


Manifestação em processo crime no qual o acusado foi denunciado por furto de duas caixas de bombom avaliadas em R$30,00. Agente multireincidente em crimes da mesma natureza. Aplicação ou não do princípio da insignificância.



TS foi denunciado pela prática de um crime de furto tentado, tipificado no artigo 155, “caput”, c.c. artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal, porquanto consta que no dia XX, no estabelecimento comercial denominado XX, nesta cidade, tentou subtrair para si duas caixas de chocolate avaliadas em trinta reais.

O Juízo, analisando os pressupostos de admissibilidade da peça acusatória, entendeu ausente justa causa para a ação penal, aplicando o princípio da insignificância para rejeitar a denúncia com fundamento no artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal.


1. Do Princípio da Insignificância

Segundo narrado na denúncia, na data dos fatos o recorrido, no interior do supermercado, pegou duas caixas de chocolates marca “YY” (auto de exibição, apreensão e entrega de fls.), avaliadas em R$30,00 (trinta reais), e as escondeu sob as vestes, deixando o estabelecimento comercial sem passar pelos caixas.

Funcionários do supermercado, suspeitando da atitude do recorrido, começaram a segui-lo, momento em que ele saiu correndo e foi detido apenas na rua.

A conduta descrita amolda-se perfeitamente ao tipo penal imputado, qual seja, “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” (art. 155 CP).

Não se descura do princípio da insignificância e seus pressupostos, assentes em larga escala na jurisprudência – mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social, reduzido grau de reprovabilidade e inexpressividade da lesão jurídica –, todavia, no presente caso não se os tem presentes, senão vejamos:


2. Da ofensividade da conduta do agente

Neste aspecto, a moderna doutrina da Teoria Constitucionalista do Delito desmembra a tipicidade penal nos aspectos formal ou objetivo, subjetivo e normativo ou material, aos quais a conduta do agente, no caso em testilha, se subsume perfeitamente.

Quanto ao aspecto formal ou objetivo, conforme relatado alhures, a ação se amolda perfeitamente ao tipo penal descrito no artigo 155, “caput”, do Código Penal, porquanto o agente praticou o núcleo do tipo, estando caracterizados todos os demais elementos, pois presente prova da materialidade.

Com relação ao aspecto subjetivo da tipicidade – caráter psicológico do agente – vê-se também presente, já que, ao passar pelos caixas do supermercado sem pagar a mercadoria, nitidamente o agente tinha o dolo de apoderar-se ilicitamente da coisa alheia.

Nesse aspecto, nem há se apurar o valor da coisa em si, pois o viés psicológico do agente, seja a coisa de pequeno ou de grande valor, dirigiu-se ao fim determinado de ter o objeto para si, ilicitamente.

No tocante ao terceiro aspecto, da tipicidade normativa ou material, ou seja, a lesão ao bem jurídico, em que pese a consideração do pequeno valor da coisa furtada diante do vultoso poder econômico do estabelecimento comercial, fato concreto é que, se não tivesse se restringido à tentativa, arcaria o comércio com o prejuízo.

Nessa toada, admitir-se diariamente pequenos furtos, individualmente de pequeno valor, resultaria, cumulativamente, lesão considerável não só ao estabelecimento vítima, mas aos próprios consumidores, para os quais os custos desses “crimes insignificantes” seriam inevitavelmente repassados.

Aqui cabe revelar, embora tais circunstâncias devam ser melhor confrontadas durante a instrução criminal, que o recorrido é frequentador assíduo do Judiciário, conforme atesta sua longa ficha criminal (fls. ...), processado por inúmeros delitos contra o patrimônio, já tendo cumprido pena, a qual, por sinal, não foi suficiente para tolher seu comportamento antissocial.

Dessa feita, considerados integralmente preenchidos os aspectos da tipicidade (formal, subjetivo e material), não se pode falar em inexistência ou pequena ofensividade da conduta.


3. Da periculosidade social da ação

Outro vetor de relevância para a caracterização do princípio da insignificância é a ausência de periculosidade social da ação.

Ora, de se perguntar se a sociedade atual, vítima diuturna dos mais variados crimes, grandes ou pequenos, tolera a conduta atribuída ao recorrido.

Cremos que não. Entendimento contrário seria esvaziar a finalidade de pacificação social do Direito e admitir que o “jeitinho” faz parte da regra vigente e que exceção são as pessoas de bem; ou então que o preceito “levar vantagem em tudo”, sobrepondo-se irrestritamente aos padrões éticos, ganhou status axiológico de maior importância.

Talvez até mesmo os defensores do princípio da insignificância devessem rever os conceitos que atribuem a essa hipótese, tendo-o como excludente supralegal de tipicidade.

Temeroso parece-nos esse fio condutor da tendência moderna que, no lugar de penalizar o agente infrator desses pequenos delitos, ainda que com sanções alternativas, ressocializadoras, simplesmente consideram a conduta atípica, irrelevante para o Direito Penal, como se outros ramos do direito pudessem reverter a infeliz e indesejável, porém visível, degradação social.

Exemplo de boa aplicação do princípio da insignificância seria, em hipótese, a do disposto no artigo 155, § 2º, do Código Penal, que trata do crime de bagatela, e não simplesmente desconsiderar e relevar a conduta ilícita.

E mais: a periculosidade da ação fica mais evidente diante do sentimento de impunidade gerado por decisões como as que ora atacamos, pois ao mesmo em que impinge nos cidadãos de bem a decepção com a ação do poder público, gera na criminalidade a pretensão de se sobrepor do próprio Estado.

Por tais fundamentos, entende-se nitidamente presente a periculosidade social da ação, tanto pelos seus reflexos diretos, quanto por aqueles mais distantes, embora não visíveis de imediato, mas que sobrelevam à noção de desmantelamento social e a sensação de aumento da criminalidade em geral.


4. Do grau de reprovabilidade do comportamento

Mais uma característica que se pretende atribuir – o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento – tem imbricação com o tópico acima.

Se se considerar a conduta delituosa ora denunciada como perigosa (nos termos do item supra, em seus aspectos imediatos e mediatos), de certo que essa mesma conduta deva ser reprovável.

Mais uma vez é necessário indagar-se: é tolerável a subtração de bens? Haveríamos de considerar que a maior parte da sociedade aceita a prática de pequenos furtos? Ou se estará diante, talvez, não de uma tolerância e aprovação, mas sim perante um descrédito do Estado, que não tem força para coibir esse tipo de crime?

Tal é a premissa que tomamos para não aceitar o argumento da reduzida reprovabilidade da conduta. Esse sentimento de “tolerância” com o chamado “crime de bagatela”, além de decorrer do já citado sentimento de impunidade, decorre da falta de conscientização da sociedade de que é ela a maior prejudicada, a principal vítima, pois terá de arcar, inevitavelmente, com o custo social desses delitos, por menores que sejam, mas que se avolumam imensamente, embora imperceptíveis.

Isso apenas corrobora a chamada “cifra negra”, aquela imensa parcela de crimes que sequer chega ao conhecimento do Judiciário, passando impune.

Repise-se: não se descura da possibilidade de reconhecimento da existência de crimes de menor relevância, os quais, porém, não podem deixar de ser cabalmente investigados e punidos, todavia não com rigores extremos, mas com alternativas adequadas.

Considerar um baixo nível de reprovação social não deve ser sinônimo de impunidade, mas de resposta adequada à conduta ilícita.


5. Da expressividade da lesão jurídica

O último aspecto relevante se confunde com os demais e os permeia: a expressividade ou não da lesão jurídica.

Caso a lesão jurídica não fosse expressiva, de que adiantaria o legislador incriminar tais condutas? Por certo, o ponto central, mais uma vez, não está no fato de não se punir (no presente caso, sequer iniciar-se a persecução penal), mas de se punir adequadamente, proporcionalmente.

Com efeito, o recorrido é contumaz furtador, conforme consta de sua extensa folha de antecedentes, já tendo sido condenado diversas vezes, se mostrando, pois, insuficientes as sanções anteriormente aplicadas.

E não é só. Se a lesão jurídica, embora de pequena monta, for considerada completamente inexpressiva, estará o Estado, na prática, “premiando” o recorrido, como um “incentivo” à prática de novas condutas.

Razão, há, portanto, para se considerar expressiva a lesão jurídica, não apenas a conduta de subtrair, em si mesma, mas também pela afronta ao ordenamento jurídico, tratando-se de reiterada conduta ilícita.


6. Do denominado “Furto Famélico”

Superada a tese da insignificância – como já dito, que não deve servir de pressuposto para o recebimento ou rejeição da denúncia, mas sim para eventual dosimetria da pena, em caso de condenação – outra tese sustentada na decisão ora atacada é do “furto famélico”.

É certo que situações excepcionalíssimas resultariam na comprovação de que a subtração de alimento, por pessoa em condição de miserabilidade, vise à satisfação de privação inadiável, da qual padece o agente ou sua família.

Todavia, não se vislumbra tal situação extrema no presente caso.

Isso porque o recorrido teria de apoderado de duas caixas de chocolate de marca reconhecidamente mais cara – duas caixas de bombons “YY” –, sendo que, caso necessitasse “matar a fome”, seria mais “lógico” ter subtraído qualquer outro gênero alimentício mais propício a saciar sua necessidade.

Aliado a essa circunstância, pesa desfavoravelmente os péssimos antecedentes do recorrido, como já mencionado, contumaz furtador.

Além disso, a hipótese de furto famélico cabe à defesa demonstrar, durante regular instrução processual, o estado de necessidade ou miserabilidade do agente.

Por tais razões, entende-se que, neste momento processual, descabe a tese do furto famélico como fundamentação para rejeição da denúncia.


7. Conclusão

Ante o exposto, pelas razões acima expostas e tendo por norte que nesta fase inicial da persecução penal vige o princípio do “in dúbio pro societate”, sendo mister a regular instrução criminal para, só então, diante das provas judiciais colhidas, aplicar-se ou não uma reprimenda penal.