Reflexões acerca do
princípio da insignificância e da Teoria Constitucionalista do Delito, diante
das condutas delitivas reiteradas
Juliano de Camargo
Assistente Jurídico do Ministério Público, pós-graduando em Direito
Público
Agosto/2011
Manifestação em processo crime
no qual o acusado foi denunciado por furto de duas caixas de bombom avaliadas
em R$30,00. Agente multireincidente em crimes da mesma natureza. Aplicação ou
não do princípio da insignificância.
TS foi denunciado pela prática
de um crime de furto tentado, tipificado no artigo 155, “caput”, c.c. artigo
14, inciso II, ambos do Código Penal, porquanto consta que no dia XX, no
estabelecimento comercial denominado XX, nesta cidade, tentou subtrair para si
duas caixas de chocolate avaliadas em trinta reais.
O Juízo, analisando os pressupostos de
admissibilidade da peça acusatória, entendeu ausente justa causa para a ação
penal, aplicando o princípio da insignificância para rejeitar a denúncia com
fundamento no artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal.
1. Do
Princípio da Insignificância
Segundo narrado na denúncia, na data dos fatos o
recorrido, no interior do supermercado, pegou duas caixas de chocolates marca “YY”
(auto de exibição, apreensão e entrega de fls.), avaliadas em R$30,00 (trinta reais),
e as escondeu sob as vestes, deixando o estabelecimento comercial sem passar
pelos caixas.
Funcionários do supermercado, suspeitando da atitude
do recorrido, começaram a segui-lo, momento em que ele saiu correndo e foi
detido apenas na rua.
A conduta descrita amolda-se perfeitamente ao tipo
penal imputado, qual seja, “subtrair,
para si ou para outrem, coisa alheia móvel” (art. 155 CP).
Não se descura do princípio da insignificância e
seus pressupostos, assentes em larga escala na jurisprudência – mínima ofensividade da conduta, nenhuma
periculosidade social, reduzido grau de reprovabilidade e inexpressividade da
lesão jurídica –, todavia, no
presente caso não se os tem presentes, senão vejamos:
2. Da
ofensividade da conduta do agente
Neste aspecto, a moderna doutrina da Teoria Constitucionalista do Delito
desmembra a tipicidade penal nos aspectos formal ou objetivo, subjetivo
e normativo ou material, aos quais a conduta do agente, no caso em
testilha, se subsume perfeitamente.
Quanto ao aspecto formal ou objetivo,
conforme relatado alhures, a ação se amolda perfeitamente ao tipo penal
descrito no artigo 155, “caput”, do Código Penal, porquanto o agente praticou o
núcleo do tipo, estando caracterizados todos os demais elementos, pois presente
prova da materialidade.
Com relação ao aspecto subjetivo da tipicidade
– caráter psicológico do agente – vê-se também presente, já que, ao passar
pelos caixas do supermercado sem pagar a mercadoria, nitidamente o agente tinha
o dolo de apoderar-se ilicitamente da coisa alheia.
Nesse aspecto, nem há se apurar o valor da coisa em
si, pois o viés psicológico do agente, seja a coisa de pequeno ou de grande
valor, dirigiu-se ao fim determinado de ter o objeto para si, ilicitamente.
No tocante ao terceiro aspecto, da tipicidade
normativa ou material, ou seja, a lesão ao bem jurídico, em que pese a
consideração do pequeno valor da coisa furtada diante do vultoso poder
econômico do estabelecimento comercial, fato concreto é que, se não tivesse se
restringido à tentativa, arcaria o comércio com o prejuízo.
Nessa toada, admitir-se
diariamente pequenos furtos, individualmente de pequeno valor, resultaria,
cumulativamente, lesão considerável não
só ao estabelecimento vítima, mas
aos próprios consumidores, para os quais os custos desses “crimes
insignificantes” seriam inevitavelmente repassados.
Aqui cabe revelar, embora tais circunstâncias devam
ser melhor confrontadas durante a instrução criminal, que o recorrido é frequentador assíduo do Judiciário, conforme atesta
sua longa ficha criminal (fls. ...), processado
por inúmeros delitos contra o patrimônio, já tendo cumprido pena, a qual,
por sinal, não foi suficiente para tolher seu comportamento antissocial.
Dessa feita, considerados integralmente preenchidos
os aspectos da tipicidade (formal, subjetivo e material), não se pode falar em inexistência ou pequena ofensividade da conduta.
3. Da
periculosidade social da ação
Outro vetor de relevância para a caracterização do
princípio da insignificância é a ausência de periculosidade social da ação.
Ora, de se perguntar se a sociedade atual, vítima
diuturna dos mais variados crimes, grandes ou pequenos, tolera a conduta
atribuída ao recorrido.
Cremos que não. Entendimento contrário seria
esvaziar a finalidade de pacificação social do Direito e admitir que o
“jeitinho” faz parte da regra vigente e que exceção são as pessoas de bem; ou
então que o preceito “levar vantagem em tudo”, sobrepondo-se irrestritamente
aos padrões éticos, ganhou status axiológico de maior importância.
Talvez até mesmo os defensores do princípio da
insignificância devessem rever os conceitos que atribuem a essa hipótese,
tendo-o como excludente supralegal de tipicidade.
Temeroso parece-nos esse fio condutor da tendência
moderna que, no lugar de penalizar o agente infrator desses pequenos delitos,
ainda que com sanções alternativas, ressocializadoras, simplesmente consideram
a conduta atípica, irrelevante para o Direito Penal, como se outros ramos do
direito pudessem reverter a infeliz e indesejável, porém visível, degradação
social.
Exemplo de boa
aplicação do princípio da insignificância seria, em hipótese, a do disposto
no artigo 155, § 2º, do Código Penal, que trata do crime de bagatela, e não
simplesmente desconsiderar e relevar a conduta ilícita.
E mais: a periculosidade da ação fica mais evidente
diante do sentimento de impunidade gerado por decisões como as que ora
atacamos, pois ao mesmo em que impinge nos cidadãos de bem a decepção com a
ação do poder público, gera na criminalidade a pretensão de se sobrepor do
próprio Estado.
Por tais fundamentos, entende-se nitidamente presente a periculosidade
social da ação, tanto pelos seus reflexos diretos, quanto por aqueles mais
distantes, embora não visíveis de imediato, mas que sobrelevam à noção de
desmantelamento social e a sensação de aumento da criminalidade em geral.
4. Do grau de
reprovabilidade do comportamento
Mais uma característica que se pretende atribuir – o
reduzido grau de reprovabilidade do
comportamento – tem imbricação com o tópico acima.
Se se considerar a conduta delituosa ora denunciada como perigosa (nos termos do item
supra, em seus aspectos imediatos e mediatos), de certo que essa mesma conduta deva ser reprovável.
Mais uma vez é necessário indagar-se: é
tolerável a subtração de bens? Haveríamos de considerar que a maior
parte da sociedade aceita a prática de pequenos furtos? Ou se estará diante,
talvez, não de uma tolerância e aprovação, mas sim perante um descrédito do
Estado, que não tem força para coibir esse tipo de crime?
Tal é a premissa que tomamos para não aceitar o argumento da reduzida
reprovabilidade da conduta. Esse sentimento de “tolerância” com o chamado
“crime de bagatela”, além de decorrer do já citado sentimento de impunidade,
decorre da falta de conscientização
da sociedade de que é ela a maior prejudicada, a principal vítima, pois
terá de arcar, inevitavelmente, com o custo social desses delitos, por
menores que sejam, mas que se avolumam imensamente, embora imperceptíveis.
Isso apenas corrobora a chamada “cifra negra”,
aquela imensa parcela de crimes que sequer chega ao conhecimento do Judiciário,
passando impune.
Repise-se: não se descura da possibilidade de
reconhecimento da existência de crimes de menor relevância, os quais, porém, não podem deixar de ser cabalmente
investigados e punidos, todavia não com rigores extremos, mas com alternativas
adequadas.
Considerar um baixo nível de reprovação social
não deve ser sinônimo de impunidade,
mas de resposta adequada à conduta ilícita.
5. Da
expressividade da lesão jurídica
O último aspecto relevante se confunde com os demais
e os permeia: a expressividade ou não da
lesão jurídica.
Caso a lesão jurídica não fosse expressiva, de que
adiantaria o legislador incriminar tais condutas? Por certo, o ponto central,
mais uma vez, não está no fato de não
se punir (no presente caso, sequer iniciar-se a persecução penal), mas de se punir adequadamente,
proporcionalmente.
Com efeito, o recorrido é contumaz furtador,
conforme consta de sua extensa folha de antecedentes, já tendo sido condenado
diversas vezes, se mostrando, pois, insuficientes as sanções anteriormente
aplicadas.
E não é só. Se a lesão jurídica, embora de pequena
monta, for considerada completamente inexpressiva, estará o Estado, na prática,
“premiando” o recorrido, como um “incentivo” à prática de novas condutas.
Razão, há, portanto, para se considerar expressiva a lesão jurídica, não apenas a conduta de
subtrair, em si mesma, mas também pela afronta ao ordenamento jurídico,
tratando-se de reiterada conduta ilícita.
6. Do
denominado “Furto Famélico”
Superada a tese da insignificância – como já dito,
que não deve servir de pressuposto para o recebimento ou rejeição da denúncia,
mas sim para eventual dosimetria da pena, em caso de condenação – outra tese
sustentada na decisão ora atacada é do “furto famélico”.
É certo que situações excepcionalíssimas
resultariam na comprovação de que a subtração de alimento, por pessoa em
condição de miserabilidade, vise à satisfação de privação inadiável, da qual
padece o agente ou sua família.
Todavia, não se vislumbra tal situação extrema no
presente caso.
Isso porque o recorrido teria de apoderado de duas
caixas de chocolate de marca reconhecidamente mais cara – duas caixas de
bombons “YY” –, sendo que, caso necessitasse “matar a fome”, seria mais
“lógico” ter subtraído qualquer outro gênero alimentício mais propício a saciar
sua necessidade.
Aliado a essa circunstância, pesa desfavoravelmente
os péssimos antecedentes do recorrido, como já mencionado, contumaz furtador.
Além disso, a hipótese de furto famélico cabe à
defesa demonstrar, durante regular instrução processual, o estado de
necessidade ou miserabilidade do agente.
Por tais razões, entende-se que, neste momento processual, descabe a tese do
furto famélico como fundamentação para rejeição da denúncia.
7. Conclusão
Ante o exposto, pelas razões acima expostas e tendo
por norte que nesta fase inicial da persecução penal vige o princípio do “in dúbio pro societate”, sendo mister a regular instrução
criminal para, só então, diante das provas judiciais colhidas, aplicar-se ou
não uma reprimenda penal.