terça-feira, 20 de setembro de 2011

Conversão de união estável homossexual em casamento


Conversão de união estável homossexual em casamento

Juliano de Camargo
Assistente Jurídico do Ministério Público, pós-graduando em Direito Público
Setembro/2011

Em recente decisão, na Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 e Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 4277, o Supremo Tribunal Federal fixou ao artigo 1.723 do Código Civil[1] interpretação conforme à Constituição Federal, para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, atribuindo-lhe os mesmos direitos e consequências de uma união estável heteroafetiva.

Com efeito, os Senhores Ministros, à unanimidade, reconheceram inexistir vedação legal ao reconhecimento das uniões homoafetivas com o fito de constituir família, dadas as novas configurações dos núcleos familiares, privilegiando mais o afeto que os aspectos estritamente legais.

O princípio da dignidade da pessoa humana – conforme essa interpretação – obriga à não discriminação, ao acolhimento das diferenças e da liberdade de orientação sexual, ao tratamento igualitário entre as pessoas, sejam hetero ou homossexuais.

Imbuídos de tal entendimento, a Suprema Corte pacificou entendimento de que o reconhecimento da união estável não está adstrita à convivência entre homem e mulher, mas sim abarca as uniões baseadas no amor, no companheirismo, na convivência diária das alegrias e tribulações.

Nesse sentido, o Ministro Marco Aurélio expressou em seu voto:

“Com base nesses fundamentos, concluo que é obrigação constitucional do Estado reconhecer a condição familiar e atribuir efeitos jurídicos às uniões homoafetivas. Entendimento contrário discrepa, a mais não poder, das garantias e direitos fundamentais, dá eco a preconceitos ancestrais, amesquinha a personalidade do ser humano e, por fim, desdenha o fenômeno social, como se a vida comum com intenção de formar família entre pessoas de sexo igual não existisse ou fosse irrelevante para a sociedade.”
(Trecho do Voto do Min. Marco Aurélio no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011).

Reconhecida, pois, a união de companheiros do mesmo sexo como “família”, aplicando-se-lhe as mesmas regras da união estável, paira a dúvida quando à extensão da conversão dessa união em casamento.

Observo, primeiramente, que o próprio Supremo Tribunal Federal deixou claro que a “família”, como ente nuclear da sociedade, é conceito desvinculado das expressõescasamento”, “união estável” ou “união homossexual”. Estas são formas de constituição de entidade familiar, mas não as únicas.

A esse respeito, embora ainda não publicado acórdão do julgamento mencionado, extrai-se dos votos proferidos pelos Ministros o excertos abaixo:

“E assim é que, mais uma vez, a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. Assim como dá para inferir que, quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente estruturados, maior a possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho.”
(Trecho do Voto do Relator Min. Ayres Britto no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011 – grifos originais).

Daí porque, ao interpretar o art. 226 da Constituição, aquele autor [José Afonso da Silva] assinala que ‘a entidade familiar fundada no casamento, portanto, não é mais a única consagrada pelo direito constitucional e, por consequência, pela ordem jurídica em geral; porque é da Constituição que irradiam os valores normativos que imantam todo o ordenamento jurídico. Ex facto oritur jus – diz o velho brocado latino. A realidade é a causadora de representações jurídicas que, até um certo momento, permanecem à margem do ordenamento jurídico formal; mas a pressão dos fatos acaba por gerar certo reconhecimento da sociedade, que vai aceitando situações antes repudiadas, até o momento em que o legislador as disciplina, exatamente para contê-las no campo do controle social. Quantos sofrimentos passaram mães solteiras que, com seus filhos, eram marginalizadas pela sociedade e desprezadas pelo Estado, porque essa comunidade não era concebida como entidade familiar, porque o sistema constitucional só reconhecia a familia biparental?’ (Op. cit., p. 863).”
(Trecho do Voto da Min. Carmen Lúcia no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011 – citando José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2010).

“Também não vislumbro, no texto normativo da Constituição, no que concerne ao reconhecimento da proteção do Estado às uniões entre pessoas do mesmo sexo, a existência de lacuna voluntária ou consciente (NORBERTO BOBBIO, “Teoria do Ordenamento Jurídico”, p. 143/145, item n. 7, 1989, UnB/Polis), de caráter axiológico, cuja constatação, evidenciadora de um “silêncio eloquente”, poderia comprometer a interpretação exposta neste voto, no sentido de que a união estável homoafetiva qualifica-se, constitucionalmente, “como entidade familiar” (CF, art. 226, § 3º).
(...)
Nessa perspectiva, Senhor Presidente, entendo que a extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria Constituição da República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar.
(...)
Também o eminente Professor (e ilustre membro do Ministério Público Federal) DANIEL SARMENTO (op. cit., p. 643) revela igual percepção em torno dessa particular questão, reconhecendo, no afeto, enquanto valor jurídico-constitucional, um elemento fundamental (e preponderante) na esfera das relações do direito de família, inclusive no âmbito das uniões entre pessoas do mesmo sexo: “Enfim, se a nota essencial das entidades familiares no novo paradigma introduzido pela Constituição de 88 é a valorização do afeto, não há razão alguma para exclusão das parcerias homossexuais, que podem caracterizar-se pela mesma comunhão e profundidade de sentimentos presentes no casamento ou na união estável entre pessoas de sexos opostos, não existindo, portanto, qualquer justificativa legítima para a discriminação praticada contra os homossexuais.” (grifei)”
(Trechos do Voto do Min. Celso de Mello no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011 – grifos originais, com citação de SARMENTO, Daniel. Casamento e União Estável entre Pessoas do mesmo Sexo: Perspectivas Constitucionais, “in” Igualdade, Diferença e Direitos Humanos, 2008, Lumen Juris).

“Na verdade, a partir de uma primeira leitura do texto magno, é possível identificar, pelo menos, três tipos de família, a saber: a constituída pelo casamento, a configurada pela união estável e, ainda, a que se denomina monoparental.
(...)
Assim, segundo penso, não há como enquadrar a união entre pessoas do mesmo sexo em nenhuma dessas espécies de família, quer naquela constituída pelo casamento, quer na união estável, estabelecida a partir da relação entre um homem e uma mulher, quer, ainda, na monoparental. Esta, relembro, como decorre de expressa disposição constitucional, corresponde à que é formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
(...)
Como, então, enquadrar-se, juridicamente, o convívio duradouro e ostensivo entre pessoas do mesmo sexo, fundado em laços afetivos, que alguns – a meu ver, de forma apropriada - denominam de “relação homoafetiva”?
(...)
Entendo que as uniões de pessoas do mesmo sexo que se projetam no tempo e ostentam a marca da publicidade, na medida em que constituem um dado da realidade fenomênica e, de resto, não são proibidas pelo ordenamento jurídico, devem ser reconhecidas pelo Direito, pois, como já diziam os jurisconsultos romanos, ex facto oritur jus. Creio que se está, repito, diante de outra entidade familiar, distinta daquela que caracteriza as uniões estáveis heterossexuais.
(...)
Assim, muito embora o texto constitucional tenha sido taxativo ao dispor que a união estável é aquela formada por pessoas de sexos diversos, tal ressalva não significa que a união homoafetiva pública, continuada e duradoura não possa ser identificada como entidade familiar apta a merecer proteção estatal, diante do rol meramente exemplificativo do art. 226, quando mais não seja em homenagem aos valores e princípios basilares do texto constitucional.
(...)
Em suma, reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar aplicam-se a ela as regras do instituto que lhe é mais próximo, qual seja, a união estável heterossexual, mas apenas nos aspectos em que são assemelhados, descartando-se aqueles que são próprios da relação entre pessoas de sexo distinto, segundo a vetusta máxima ubi eadem ratio ibi idem jus, que fundamenta o emprego da analogia no âmbito jurídico.
(Trechos do Voto do Min. Ricardo Lewandowski no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011).

“Existe razoável consenso na ideia de que não há hierarquia entre entidades. Portanto, entre o casamento e a união estável heterossexual não existe, em princípio, distinção ontológica; o tratamento legal distinto se dá apenas em virtude da solenidade de que o ato jurídico do casamento – rectius, o matrimônio – se reveste, da qual decorre a segurança jurídica absoluta para as relações dele resultantes, patrimoniais (como, v.g., o regime de bens ou os negócios jurídicos praticados com terceiros) e extrapatrimoniais. A união estável, por seu turno, demandará, em muitos casos, a produção de outras provas facilmente substituídas, num casamento, pela respectiva certidão, mas, como entidades familiares, funcionarão substancialmente do mesmo modo.
Pois bem. O que distingue, do ponto de vista ontológico, as uniões estáveis, heteroafetivas, das uniões homoafetivas? Será impossível que duas pessoas do mesmo sexo não tenham entre si relação de afeto, suporte e assistência recíprocos? Que criem para si, em comunhão, projetos de vida duradoura em comum? Que se identifiquem, para si e para terceiros, como integrantes de uma célula única, inexoravelmente ligados?
A resposta a essas questões é uma só: Nada as distingue. Assim como companheiros heterossexuais, companheiros homossexuais ligam-se e apoiam-se emocional e financeiramente; vivem juntos as alegrias e dificuldades do dia-a-dia; projetam um futuro comum.
Se, ontologicamente, união estável (heterossexual) e união (estável) homoafetiva são simétricas, não se pode considerar apenas a primeira como entidade familiar. Impõe-se, ao revés, entender que a união homoafetiva também se inclui no conceito constitucionalmente adequado de família, merecendo a mesma proteção do Estado de Direito que a união entre pessoas de sexos opostos.”
(Trecho do Voto do Min. Luiz Fux no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011).

“Revela-se, então, a modificação paradigmática no direito de família. Este passa a ser o direito “das famílias”, isto é, das famílias plurais, e não somente da família matrimonial, resultante do casamento. Em detrimento do patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos centrais de caracterização da entidade familiar. Alterou-se a visão tradicional sobre a família, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena comum.
Abandonou-se o conceito de família enquanto “instituição-fim em si mesmo”, para identificar nela a qualidade de instrumento a serviço da dignidade de cada partícipe, como defende Guilherme Calmon Nogueira da Gama (Direito de família e o novo Código Civil, p. 93, citado por Maria Berenice Dias, Manual de direito das famílias, 2010, p. 43).”
(Trecho do Voto do Min. Marco Aurélio no julgamento da ADI 4277/DF, STF, 2011).

Vê-se, obter dictum, que o entendimento unânime dos eminentes Ministros do Supremo foi pelo acolhimento e reconhecimento das uniões homossexuais como verdadeira “família” e merecedora da proteção do Estado, não se estendendo – já que extraneos ao julgamento – à possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Fica nítida a lição de que o casamento é instituto destinado a constituir família, mas não o único. Família ou entidade familiar é ente social reconhecido no casamento, na união estável hetero ou homossexual, nos agregados monoparentais (um dos pais e seus descendentes), ou anaparentais (grupo de irmãos, sem os pais), ou socioafetivos. Até mesmo um único indivíduo poderá ser considerado família[2].

Daí, pois, partir-se do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo – com os mesmos direitos e garantias inerentes às uniões hetorossexuais –, para a conversão em casamento, é alargar em demasia, ao menos por ora, a interpretação assentada pelo Supremo Tribunal Federal que, no limite do julgado, apenas atribuiu status de entidade familiar a tais uniões.

Reflito “por ora”, pois caberá ao legislador providenciar as alterações constitucionais e infraconstitucionais para reconhecer de uma vez por todas uma situação fática corrente, coadunando-se com a dinâmica da sociedade, possibilitando que os indivíduos, na sua liberdade sexual e afetiva, optem pela formalização legal da convivência pelo instituto do matrimônio.

Verifico, portanto, o patente direito dos requerentes ao reconhecimento de sua convivência estável, pública e duraroura, até mesmo com reconhecimento ex tunc da constituição de verdadeira família, disso advindo as decorrências legais e os reflexos patrimoniais e sucessórios intrínsecos.

Entretanto, pelos fundamentos acima expostos e por falta de previsão legal, descabe, ainda por ora, a conversão da união estável homossexual em casamento.



[1] Código Civil, artigo 1.723 – “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
[2] A respeito da impenhorabilidade do bem de família, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que mesmo o imóvel de pessoa solteira é bem de família, pois, se a lei protege um grupo de pessoas, também deve proteger a pessoa que vive o mais triste dos sentimentos que é a solidão. (STJ, Recurso Especial nº 450989/RJ, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, J. 13/04/2004).