domingo, 21 de novembro de 2010

Desvio de dinheiro em sindicatos: aproprição indébita ou peculato?

Atos de desvio de dinheiro em sindicatos, praticados por seus administradores, configura que tipo de crime: peculato ou apropriação indébita?

Juliano de Camargo
Bacharel em Direito, concursando e pós-graduando em Direito Público pela LFG

Inicialmente, colaciono os dispositivos legais pertinentes ao tema:
Código Penal
Apropriação indébita
Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Peculato
Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.
Funcionário público
Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.   (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

Consolidação das Leis do Trabalho - CLT
Art. 552 - Os atos que importem em malversação ou dilapidação do patrimônio das associações ou entidades sindicais ficam equiparados ao crime de peculato julgado e punido na conformidade da legislação penal.  (Redação dada pelo Decreto-lei nº 925, de 10.10.1969)

            Observe que a Consolidação das Leis do Trabalho, na redação do atual artigo 552, estabelece que é equiparado ao crime de peculato as apropriações ou desvios de patrimônio das associações ou entidades sindicais, isto é, administradores, diretores, presidentes de sindicatos, responsáveis pelo patrimônio da entidade, estariam equiparados a funcionários públicos.
            O crime de peculato, descrito no art. 312 do Código Penal assemelha-se ao delito de apropriação indébita (art. 168 do CP), mas qualificado pela condição especial do agente: funcionário público. E o diploma penal tem uma abordagem bem abrangente do que é considerado funcionário público, nos termos do seu art. 327.
            Porém, entre aqueles que exercem cargo, emprego ou função pública, seja na administração direta, seja na indireta, ou mesmo em atividade típica do Poder Público, não se encontram as figuras de diretores ou presidentes de sindicatos, entidades, hoje, reconhecidamente particulares, não públicas.
            Tal leitura decorre da própria Constituição Federal de 1988, no artigo 8º e seu inciso I, ao desestatizar os sindicatos e vedar qualquer interferência ou ingerência do Poder Público em sua organização.
Constituição Federal de 1988
Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
I - a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical;

            Daí a necessária interpretação do dispositivo da CLT que equipara o que na verdade seria o delito de apropriação indébita (art. 168 do Código Penal) ao crime de peculato.
            A redação original do art. 552 da CLT dispunha que Os atos que importem malversação ou delapidação do patrimônio das associações sindicais ficam equiparados aos crimes contra a economia popular e serão julgados e punidos na conformidade dos arts. 2º e 6º, do decreto-lei nº 869, de 18 de novembro de 1938.”, ou seja, tratava a conduta como atentado à própria organização popular, dada a relevância sindical nas tratativas trabalhistas e a relação com os sindicalizados. À época, importante ressaltar, a Constituição de 1937 trazia dispositivos específicos sobre os sindicatos, tratando-os como braços estatais entre a organização dos trabalhadores:
Constituição Federal de 1937
Art. 61 - São atribuições do Conselho da Economia Nacional:
(...)
b) estabelecer normas relativas à assistência prestada pelas associações, sindicatos ou institutos;
(...)
g) emitir parecer sobre todas as questões relativas à organização e reconhecimento de sindicatos ou associações profissionais;
Art. 138 - A associação profissional ou sindical é livre. Somente, porém, o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal dos que participarem da categoria de produção para que foi constituído, e de defender-lhes os direitos perante o Estado e as outras associações profissionais, estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para todos os seus associados, impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles funções delegadas de Poder Público.
(grifo nosso)

            Dado o papel dos sindicatos, a edição original do art. 552, de 1943, o que seria uma apropriação indébita era tratado como crime contra a economia popular. Posteriormente, o Decreto-Lei 925/69 alterou o texto para sua atual redação, equiparando a conduta ao peculato. Tal diploma alterou diversos tópicos legais relacionados aos sindicatos.
            No período da ditadura, a Constituição Federal de 1967, com a Emenda de 1969, dispunha que:
Constituição Federal de 1967 (EC 01/69)
Art. 166. É livre a associação profissional ou sindical; a sua constituição, a representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas de poder público serão regulados em lei.
§ 1º Entre as funções delegadas a que se refere êste artigo, compreende-se a de arrecadar, na forma da lei, contribuições para custeio da atividade dos órgãos sindicais e profissionais e para a execução de programas de interêsse das categorias por êles representados.
§ 2º É obrigatório o voto nas eleições sindicais.

            Nitidamente as organizações sindicais sofriam ingerência direta do poder público, justificando a redação do art. 552 da CLT, equiparando os desvios de verbas ou patrimônios da entidade como crime de peculato, pois a diretoria equivalia, na prática, ao funcionalismo público.
            Contudo, a partir da Constituição Federal de 1988, não mais se tolera a interferência estatal nas entidades organizadas dos trabalhadores, razão pela qual deve-se entender não recepcionada a norma aqui discutida, o art. 552 do diploma trabalhista. Não subsistindo a regra, as condutas ilícitas descritas amoldam-se ao crime de apropriação indébita, crime impróprio, praticado por qualquer agente.
            E a importância é relevantíssima, dada a grande diferença das penas aplicadas, já que a apropriação indébita é apenada com reclusão de um a quatro anos e multa, enquanto o peculato, com reclusão, de dois a doze anos, e multa.
            Concluindo, nosso entendimento é que o ato de desvio de dinheiro em sindicatos, praticados por seus administradores, diretores ou gestores, configura crime de apropriação indébita e não de peculato, posicionando-nos pela não recepção do art. 552 da CLT pela Constituição Federal de 1988.