terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Posto que...

Posto que...
Juliano de Camargo
Bacharel em direito e pós-graduando em direito público

Escrevo este texto, posto que necessário. Hãaa? A construção parece correta, mas está errada; e muito. Frases semelhantes são comuns (e estão se tornando cada vez mais freqüentes) em todos os meios, principalmente no juridiquês, como se a expressão “posto que” revelasse uma causa, um por quê, um antecedente que justificasse a primeira frase. Mas não é este seu sentido.
“Posto que” é expressão concessiva ou permissiva que se enquadra na família do “embora”, “ainda que”, “conquanto”, “mesmo que”.
Ex.:
Código Civil, Artigo 460: Se for aleatório o contrato, por se referir a coisas existentes, mas expostas a risco, assumido pelo adquirente, terá igualmente direito o alienante a todo o preço, posto que a coisa já não existisse, em parte, ou de todo, no dia do contrato.
Isto é, no contrato aleatório no qual o comprador assume o risco do perecimento da coisa, o vendedor tem direito ao recebimento de todo preço, mesmo que a coisa já não exista.

Código de Processo Civil, artigo 1.046, §2º: Equipara-se a terceiro a parte que, posto figure no processo, defende bens que, pelo título de sua aquisição ou pela qualidade em que os possuir, não podem ser atingidos pela apreensão judicial.

Ou seja, embora figure no processo, aquele que defende bens que não podem ser objeto de apreensão judicial, não é parte, mas sim considerado terceiro. Em síntese, ainda que seja parte, equipara-se a terceiro.
Essa é a utilização correta da expressão “posto que”, sempre no sentido de indicar um embora, nunca com sentido de causa e consequência. Por isso estão equivocadas frases correntes – utilizadas até por juristas renomados – como, por exemplo: “Concedo a liminar, posto que presentes os requisitos legais...” Soa ilógico se substituirmos por “embora”, “ainda que”.
Para resolver esse dilema, muitos substituem a expressão por “eis que” (indefiro o pedido, eis que intempestivo). Originalmente o “eis que” tinha sentido temporal equivalente a quando, ou na locução mais antiga “eis senão quando”.
Observe a frase: corria para casa, eis que começou a chover. É facilmente substituível por “quando”.
Porém, no uso corrente, o eis que passou a ter sentido causal, equivalente a “visto que”,  já que”, “porquanto”: Faculto a apresentação de novos memorais, diante das provas novas juntadas, eis que o direito de defesa é pressuposto do devido processo legal.
Parece que o posto que segue no mesmo sentido, de significância causal. Talvez influência do espanhol, idioma que utiliza o “puesto que” como indicativo de consequência ou explicação (sofreu a mesma mutação que hoje ocorre no Brasil).
Senão, como interpretar o final do “Soneto de Fidelidade” de Vinícius de Moraes:
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chamaMas que seja infinito enquanto dure.

Embora esteja se tornando lugar-comum o uso do “posto que” no sentido causal, o mais correto é adotá-lo com sentido concessivo. E na dúvida, evite a expressão; substituições não faltarão. Analise se o sentido que se quer dar é de “embora” ou “visto que”.
Afinal, seja fiel à gramática, posto que esquecida.
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Referência: