quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Inconstitucionalidade progressiva

No que consiste a “inconstitucionalidade progressiva”? Ela já foi utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, no Brasil?

JULIANO DE CAMARGO
Bacharel em Direito e Pós-graduando em Direito Público - LFG
Junho/2010
A discussão da constitucionalidade de norma ou ato do poder público sempre permeia aspectos hipotéticos, em tese, para somente em momento posterior a declaração – do Supremo Tribunal Federal ou Tribunais inferiores – ser aplicada aos casos concretos. Porém, nem mesmo a discussão em tese afasta a realidade fática, que sofre os reflexos da decisão e necessita ser ponderada.
Tal é a sinalização apontada pela construção da chamada “inconstitucionalidade progressiva” ou “norma ainda constitucional” ou “declaração de constitucionalidade de norma em trânsito para a inconstitucionalidade”. Trata-se de construção da Corte Constitucional alemã ao considerar que uma lei, diante das circunstâncias fáticas presentes, ainda é constitucional, mas poderá vir a ser considerada inconstitucional caso tais fatos se alterem de forma significativa.[1]
A declaração de constitucionalidade que aponta uma lei como em trânsito para a inconstitucionalidade, acena para a real possibilidade da norma ou ato atacado apresentar-se em afronta à Constituição, porém condicionada a evento futuro e incerto. Enquanto não implementadas as situações fáticas condicionantes, as relações jurídicas decorrentes da aplicação da norma ou ato atacado são plenamente válidas e eficazes.
O Supremo Tribunal Federal já consagrou a técnica da “lei ainda constitucional”, em especial no precedente[2] de HC nº 70.514, no qual se discutia a constitucionalidade da Lei 1.060/50 no tocante à contagem dos prazos processuais em dobro para a Defensoria Pública nas ações criminais[3], sendo que da mesma prerrogativa não goza o Ministério Público. O STF entendeu que, enquanto as Defensorias Públicas não estiverem estruturalmente implantadas e organizadas nos Estados, o dispositivo mantém-se constitucional, já que permite, de certa maneira, o equilíbrio entre as partes – acusação e defesa – no processo criminal. Assim, no momento em as Defensorias Públicas alcancem o nível de organização do Ministério Público, a norma poderá ser declarada inconstitucional.
Em sentido semelhante, discutindo o art. 68 do Código de Processo Penal, o julgamento do Recurso Extraordinário 135.328/SP, do qual transcrevo parte da ementa:
INCONSTITUCIONALIDADE PROGRESSIVA – VIABILIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DO DIREITO ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE – ASSISTÊNCIA JURÍDICA E JUDICIÁRIA DOS NECESSITADOS – SUBSISTÊNCIA TEMPORÁRIA DA LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ao Estado, no que assegurado constitucionalmente certo direito, cumpre viabilizar o respectivo exercício. Enquanto não criada por lei, organizada - e, portanto, preenchidos os cargos próprios, na unidade da Federação - a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo 68 do Código de Processo Penal, estando o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista. Irrelevância de a assistência vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não lhe competir, constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento. (STF, RE 135.328/SP, rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.06.1994)
O tratamento dado para uma norma declarada “ainda constitucional” revela o sentido social da aplicação do controle de constitucionalidade, que deve estar atento às demandas da sociedade e à realidade prática, não simplesmente numa discussão meramente teórica.
No caso em concreto acima citado, apontado como precedente, visou-se garantir a proteção dos hipossuficientes, sem se descurar da preservação do texto constitucional, já que se apontou para a inconstitucionalidade condicionada ao futuro.
Por outro lado, críticas existem à inconstitucionalidade progressiva, na medida em que o judiciário estaria atrelado à atuação do poder público, o qual, em caso de omissão, não faria alterar o status quo, permanecendo a norma atacada indefinidamente no meio termo entre ser inconstitucional ou não. Os adeptos da posição mais tradicional e pura asseveram que a lei ou é plenamente constitucional ou é simplesmente inválida, inexistente, porquanto afronta o texto maior[4].
Porém, fica evidente a flexibilização da nossa Corte Suprema, não se apegando a formalismos restritivos que, a par de garantir a unicidade e coerência do sistema e a supremacia do texto constitucional, não viria ao encontro dos anseios sociais.
De outro lado, o instituto aqui tratado abre espaço para o diálogo entre os poderes, pois permite ao judiciário apontar ao legislativo e executivo a trilha por onde segue a norma no caminho para a inconstitucionalidade, levando ao debate institucional.
A aplicação, pois, da chamada inconstitucionalidade progressiva, apresenta mais pontos positivos que negativos e o seu reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal, no Brasil, reforça o avanço da concretude do direito em busca da justiça efetiva.

Referências:
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 4ª ed. Coimbra, Portugal: Armenio Amado, 1979.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
SOUZA, Renee do Ó; SOUZA, Alessandra V. de A. Prado. Da inconstitucionalidade progressiva e sua aplicação abstrata . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 755, 29 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7094>. Acesso em: 19 jun. 2010.
Jurisprudência citada – fonte: Supremo Tribunal Federal (http://www.stf.jus.br)


[1] Cf. LENZA, op. cit., p. 173/175.
[2] STF, Habeas Corpus 70.514/RS, rel. Min. Sydney Sanches, j. 23.03.1994.
[3] A Lei 7.781/89 acrescentou o §5º ao art. 5º da Lei 1.060/50 – que trata da assistência judiciária gratuita aos necessitados – prevendo a contagem de prazos processuais em dobro para as Defensorias Públicas: “§ 5° Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por eles mantida, o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente de todos os atos do processo, em ambas as Instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos.”
[4] KELSEN, H. op. cit., p. 367/368.